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Hoje o Chile vive o segundo dia de protestos nacionais em apoio às demandas estudantis. Segundo reportagem do CIPER, estudantes migram para a Argentina para fugir das dívidas.

Reportagem
25 de agosto de 2011
12:00
Este artigo tem mais de 12 ano

Hoje há 207.256 jovens que juntos devem 514 milhões de pesos (aproximadamente 1,7 milhão de reais) ao CAE, criado em 2006, para aplacar a “rebelión de los pinguinos”, que reivindicava melhorias no sistema educacional do país.

No dia 30 de junho deste ano, enquanto cerca de 100 mil pessoas se manifestavam nas ruas chilenas pedindo educação de qualidade e sem fins lucrativos, uma centena de jovens fazia o mesmo nas ruas de Buenos Aires – em uma passeata que foi do Obelisco até o consulado chileno.

A maioria dos manifestantes tinha deixado seus lares no Chile para viver na Argentina, país onde as universidades são gratuitas. “O exílio educacional ao qual nos vemos obrigados se deve às condições injustas de custo, entrada e acesso à educação superior de qualidade no nosso país”, diz trecho da carta aberta entregue na embaixada.

O número de chilenos que optaram por cruzar os Andes e estudar na Argentina é incerto. Conhecemos apenas o número dos que se increveram na Embaixada da Argentina para preencher vagas oferecidas no ensino superior. Em 2011, 568 chilenos foram aceitos na graduação, o que corresponde a 40,7% das 1.400 vagas oferecidas para estudantes estrangeiros e representa um salto em relação a 2000, quando apenas 65 chilenos escolheram ir para a Argentina.

Mas o número pode ser ainda maior, já que existem os chilenos radicados na Argentina por outros motivos e que também têm acesso a educação gratuita – depois de algum tempo podem, inclusive, obter o DNI (Documento Nacional de Identidade), o que os torna cidadãos argentinos. Segundo os registros oficiais, os chilenos que tiraram o DNI subiram de 827 (em 2004) para 4.835 (em 2010).

Quantos seguiram essa rota para estudar de graça ninguém sabe e também há estudantes chilenos em universidades privadas na Argentina, que pagam mensalidades mais baixas do que nas universidades particulares no Chile.

A CIPER, parceira da Pública, solicitou ao Ministério da Educação da Argentina, ao Consulado Geral Chileno em Buenos Aires e à Embaixada Chilena, as estatísticas sobre o total de chilenos que estudam no país, mas as informações não estão disponíveis.

Fugindo da dívida

A possibilidade de estudar jornalismo de graça levou o chileno Gustavo Ampuero, de 23 anos, a deixar o país e a família e ingressar no curso básico da Universidade de Buenos Aires. “Estudar ali sai de graça. Só preciso bancar os 150 mil pesos (516 reais) mensais que gasto para viver. No Chile era impossível viver e estudar com esse dinheiro”.

Gustavo estudou em colégio municipal e sua pontuação PSU (Prova de Seleção Universitária) não foi suficiente para garantir uma bolsa em seu país. Da família de cinco pessoas, apenas seu pai trabalha. O irmão mais velho está endividado e suspendeu a universidade por “falta de dinheiro”.

Por um semestre, Gustavo chegou a cursar jornalismo na UNIACC e gastava, em média, 300 mil pesos (R$1.032,00) por mês entre mensalidades, alimentação e estadia. Com cinco anos de duração o custo total seria de 18 milhões de pesos (R$62.000,00). “Era impagável para qualquer família de classe média com três filhos”, diz. “Ou deixava de estudar ou me endividava. Pensei muito, porque é difícil deixar a família. Mas foi a única saída.”

Os 150 mil pesos que a sua família envia por mês significa um grande esforço, mas está dentro do possível: o pai manda 100 mil pesos e a tia completa o orçamento.

Ao final do seu curso Gustavo terá gasto 9 milhões de pesos com sua estada na Argentina. No Chile, esse dinheiro pagaria somente algum instituto técnico profissional não reconhecido. “Não é justo que o sistema educacional chileno te deixe de fora apenas porque você não tem dinheiro para estudar o que você quer”, desabafa o estudante.

Apesar das saudades da família, Gustavo está contente, principalmente por estar livre da dívida que milhares de jovens chilenos carregam na mochila.

Jovens devedores

A SBIF (Superintendência de Bancos) registra que mais de 370 mil estudantes devem mais de um trilhão de pesos, uma média de 30 milhões de pesos (R$103.000,00) por aluno. Esses números, no entanto, não incluem os estudos do Fundo de Solidariedade, um tipo de financiamento mais barato – 2% de juros – oferecido diretamente pelo Estado.

A CIPER também solicitou ao SBIF e ao Ministério de Educação o número de alunos que estudam pelo Fundo de Solidariedade, mas eles não forneceram os dados.

Para muitos jovens a opção para estudar no Chile passa pelo acesso aos sistemas de crédito disponíveis, por isso a maioria dos estudantes estão endividados. “É inquestionável a dependência dos créditos para que mais jovens chilenos tenham acesso à educação superior”, disse Maria Paz Arzola, pesquisadora do Programa Social do Centro para Liberdade e Desenvolvimento.

Segundo um estudo do Banco Mundial, a população com acesso ao ensino superior (universidades, institutos técnicos e profissionais) cresceu de 200 mil alunos, em 1993, para 940 mil em 2010. Destes, cerca de 700 mil são estudantes universitários.

Ainda segundo os estudos do Banco Mundial, os gastos públicos com educação no Chile aumentaram 231% entre 2006 e 2010, mas apenas 15% do custo da educação superior chilena é pago com dinheiro público. Os 85% restantes são financiados pelos estudantes e seus familiares. Mesmo nos Estados Unidos, onde prevalece a educação privada, o Estado contribui com 30% do investimento, sendo os 70% restantes de responsabilidade das famílias.

Já no Canadá, Estado e famílias contribuem igualmente com 50% do custo educacional. No México e em outros países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), a proporção é inversa: o Estado financia 70% da educação e, a família, apenas 30%.

Uma boa parte do valor privado gasto na educação é financiado pelas famílias chilenas por meio do já citado Crédito com Aval do Estado (CAE), o tipo de empréstimo mais questionado hoje pelo movimento estudantil.

Paradoxalmente, o CAE – um crédito de 10 a 15 anos para aqueles com uma média de 475 pontos no PSU – foi umas das políticas públicas adotadas pelo governo de Michele Bachelet, em 2006, para acalmar os ânimos dos estudantes naquele ano.

Como resultado, as matrículas cresceram – o que é avaliado positivamente pelo Banco Mundial, que considera que esse sistema teve o mérito de contemplar pessoas de baixa renda. “Toda a sociedade se beneficia ao ter mais graduados, principalmente a pessoa que estuda utilizando os créditos disponibilizados pelo Estado”, argumenta Maria Arzola.

Em contrapartida, segundo a SBIF e CAE, em apenas 5 anos mais de 207 mil estudantes de grupos de baixa renda acumularam a já citada dívida que ultrapassa 514 milhões de pesos, o que indica a falência da ideia de que o universitário poderia pagar sem problemas o empréstimo que o permitiria dar o salto econômico. O que está acontecendo de fato é que uma boa parte dos estudantes vulneráveis acabam endividados, sem condições de ingressar na carreira que o permitiria saldar as dívidas.

Maurício queria ser veterinário

O caso de Mauricio Zapata, estudante de jornalismo da Universidade Central é um exemplo do que acontece na prática. Ao deixar o Instituto Nacional em 2004, começou a estudar medicina veterinária na Universidade do Chile com 53% do curso financiado por uma bolsa do Ministério da Educação. O restante seria pago com um empréstimo do Fundo de Solidariedade – o único sistema de crédito garantido pelo Estado, extinto em 2006.

No entanto, o dinheiro da bolsa e do crédito não foi suficiente para pagar as despesas universitárias, o que se agravou quando o pai ficou desempregado, em 2008. “Eu era o filho mais velho, o principal responsável pelas despesas da casa depois dele. Todos os dias havia brigas em casa, relacionadas a falta de dinheiro”, diz. “Não basta pagar a mensalidade do curso, é preciso arcar com custos como transporte, alimentação, fotocópias, livros… Todos os meses, eu precisava de um reforço de 200 mil pesos”, conta.

Com todos esses problemas, as notas de Mauricio começaram a cair o que o fez perder a bolsa do Ministério da Educação. O resultado: muito trabalho como atendente da rede Starbucks, servente de pedreiro, além das aulas particulares para alunos que prestariam o PSU. Não adiantou o esforço. Maurício saiu da universidade em 2008 sem concluir a faculdade de Veterinária e com uma dívida de cerca de 5 milhões de pesos (R$17.000).

Teve que fazer novo empréstimo para voltar a estudar, agora jornalismo, na Universidade Central, e ainda não saldou a dívida do curso interrompido. “A carta dizendo que devo começar a pagar já chegou. Além de toda a papelada, tenho que provar que a minha casa foi destruída pelo terremoto. Disse a eles ‘Como vocês querem que eu consiga 5 milhões de pesos se a minha casa está destruída e ainda estou estudando? Tenham um pouco de piedade, que eu vou pagar’. Finalmente recebi um email dizendo que adiariam a dívida por um ano, mas não sei o que vai acontecer”, disse Mauricio.

Taxas e juros

“O CAE não foi uma solução. Ao contrário, reforçou a ideia de que o ensino superior é um privilégio e que o sistema responde à lógica do mercado e não ao direito humano de todos os chilenos”, diz Rodrigo Sanchez, especialista do Observatório de Políticas Educacionais da Universidade do Chile.

Segundo o pesquisador, uma das principais falhas do CAE é que o crédito não cobre o custo total da educação, obrigando aos alunos negociar empréstimos suplementares com os bancos privados, com taxas de juros maiores. Ou seja, o crédito pode cobrir, por exemplo, 80% de um curso, e os outros 20% terão que ser financiados por outro tipo de crédito. “Essa diferença é o que leva os milhares de estudantes chilenos endividados a protestar nas ruas”, resume Sanchez.

Juan Ignácio Reculé, estudante de medicina na Universidade do Chile, paga o curso fazendo malabarismos com créditos distintos: Fundo de Solidariedade, CAE para pagar a maior parte do curso, e um crédito do CORFO para pagar seu primeiro ano.

Relata que quando foi prestar vestibular estava entre medicina e música. A dívida foi fundamental para sua escolha: “Sabia que se fizesse música seria muito difícil pagar os créditos”.

Ao terminar o curso de medicina sua dívida será de 30 milhões de pesos (R$ 103.000,00), mas ele não se preocupa: “Sei que nesses dez anos que tenho para pagar a dívida, irei me especializar e ganhar mais. Mas se minha carreira fosse outra, seria como ter uma espada de Damôcles sobre mim”, diz.

Todos esses cálculos de créditos e débitos levou Alfonso Meneses a ir para a Argentina há 4 anos para estudar medicina. O caçula de três irmãos não teve pontuação suficiente no PSU para entrar no curso que desejava; e sua família não tinha o dinheiro necessário.

A irmão e a irmã de Alfonso conseguiram bolsas de estudos em faculdades privadas (pagando 3 milhões de pesos por ano). “Com uma família com três filhos, meus pais não iriam conseguir pagar para mim”, lembra o estudante que viu na Argentina a solução dos seus problemas.

Em 2007 quando o número de vagas para estudantes estrangeiros chilenos subiu de 233 para 468 no país vizinho, Alfonso foi estudar medicina na Universidade de Buenos Aires (UBA). “Foi basicamente por três razões: minha pontuação no PSU, estudos complementares gratuitos e a qualidade da educação e dos professores que são indiscutíveis na UBA”, explica.

O investimento de Alfonso e sua família pelos estudos na Argentina corresponde a cerca de 40% do custo na Universidade do Chile e a metade do que pagaria na Pontifícia Universidade Católica (PUC). Neste mesmo ano, 107 chilenos ganharam a oportunidade de estudar medicina na Argentina, cinco na UBA.

De acordo com dados do Departamento Cultural da Embaixada da Argentina no Chile, dos 3.307 estudantes chilenos que ingressaram entre 2000 e 2010 no ensino superior argentino pela cota de estrangeiros, 47,32% foram admitidos na UBA, cerca de 18% no Colégio Nacional de Arte, e 14,24% na Universidade Nacional de La Plata. “Outros foram para a Argentina e conseguiram o DNI o que permite ingresso em qualquer faculdade pública como residente”, diz Alfonso.

O que, para muitos, é melhor do que a dívida como bem sabe Mauricio Zapata, que deve 24 milhões de pesos em créditos educativos: “É como uma corrida de ratos, você não pode escapar e fica permanentemente pensando em como ganhar dinheiro para pagar as dívidas e sair desse inferno. Você não tem férias, sua cabeça não descansa. Estou sempre elocubrando sobre como ter dinheiro para mandar para minha família, pagar a faculdade e, pelo uma vez na vida, estudar tranquilo. Sei que tenho capacidade de sobra para completar um curso, por isso minha pontuação é alta. Mas o problema é que a minha capacidade é barrada pelas questões econômicas.”

Em tempo

Nesta quinta-feira prosseguem os protestos conclamados pela Central Unitaria de Trabajadores em apoio às demandas estudantis. São 48 horas de paralizações, marchas e panelaços. Ontem, os protestos geraram confrontos que, segundo o governo chileno, feriram  17 civis e 19 policiais. Além disso, o governo estima que 348 pessoas tenham sido detidas durante o dia, além de 108 durante a madrugada em todo o país.

Clique aqui para ler a reportagem original, em espanhol.

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