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Comitê técnico da Unesco condenou viaduto gigante construído no mar mas assembleia vai avaliar o caso apenas em 2015, quando obra já estará pronta

Reportagem
4 de julho de 2013
14:20
Este artigo tem mais de 10 ano

“São mais de 340 anos de história perdidos. O dano visual é horrível, o horizonte do Golfo do Panamá se perdeu, não se vê mais a península”, lamenta Hildegard Vasquez, presidente da Fundación Calicanto, uma organização que tem como missão a proteção do patrimônio histórico e humano do Panamá.

A arquiteta se refere ao viaduto de seis pistas com 2,8 quilômetros de extensão que rasga o mar em frente à península do bairro histórico de Casco Antiguo, na capital do país, tombado em 1997 como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. A obra, da empreiteira brasileira Odebrecht, faz parte da nova rede viária do Panamá, a Cinta Costera, contratada por cerca de 1 bilhão de dólares – dos quais US$ 780 milhões foram para o viaduto que interliga duas avenidas fazendo a conexão da parte sul da Cidade do Panamá para as pontes que levam às cidades-dormitórios.

Licitado em 2010, o projeto previa um túnel, e não um viaduto, que pouparia a belíssima e histórica paisagem de Casco Antiguo, uma enseada estreita protegida naturalmente por rochas, reforçadas pelos espanhóis que para ali se mudaram depois que o primeiro assentamento na baía do Panamá, o Panamá Viejo, foi destruído por piratas em 1671. Vencida a licitação, porém, a Odebrecht substituiu o túnel previsto pelo Viaduto Marinho, que vai de uma ponta a outra da enseada, formando uma muralha entre o bairro histórico e o mar do Golfo do Panamá. Atualmente, mais de 60% da obra está concluída.

Cerca de 14 entidades civis, entre elas a Calicanto, organizaram uma frente chamada “Orgullo” para lutar pela suspensão do viaduto que, além de por em risco um patrimônio da humanidade, “viola as normas de contratação pública”, segundo o advogado Félix Wing, do Orgullo, especialista em direito ambiental e internacional. De acordo com ele, as leis panamenhas não permitem modificar uma obra já licitada se as alternativas não estiverem explicitadas na licitação, e a obra “retira de Casco Antiguo a sua relação intrínseca com o mar e o entorno e impacta negativamente a dinâmica das ondas, das marés e da corrente marítima, que são cruciais para garantir o futuro do saneamento natural da baía de Panamá”.

Na última semana de junho, durante a 37° Assembleia do Comitê de Patrimônio Mundial da UNESCO, em Phnom Penh, no Camboja, que reuniu representantes de 101 países para discutir a situação dos sítios protegidos (atualmente 981 propriedades em 160 diferentes países/nações, das pirâmides do Egito ao Parque Nacional do Iguaçu, no Brasil, fazem parte da lista) e analisar novos pedidos de inclusão na lista de Patrimônio Mundial, o debate ganhou proporções internacionais com a tentativa de inclusão do sítio arqueológico Casco Antiguo – Panamá Viejo na lista de patrimônios em risco, o que ocorre quando o governo de um país não cumpre a obrigação de proteger o patrimônio tombado. O motivo é justamente a polêmica obra, como explicita o documento oficial elaborado pelo comitê técnico da UNESCO para a ocasião:

“O Centro do Patrimônio Mundial e os Órgãos Consultivos ressaltam os impactos visuais negativos do Viaduto Marinho, que irá transformar o cenário do Centro Histórico. Eles observam ainda que o viaduto tem uma estrutura muito forte, com um alto impacto visual, que não se integra harmoniosamente com o distrito histórico e estabelece um contraste indesejável no que diz respeito ao seu contexto marítimo” .

“As alternativas ao viaduto não foram suficientemente exploradas e a construção já começou, sem permitir que o Comitê do Patrimônio Mundial tivesse tempo de avaliar e identificar as possíveis recomendações”, afirma o mesmo documento. E prossegue: “Dado o atual grau e extensão de impactos negativos sobre o valor excepcional universal da propriedade, derivados da construção do Viaduto Marinho, e do estado de conservação do prédio histórico, o Patrimônio Mundial e os Órgãos Consultivos afirmam que o Comitê deve inscrever esta propriedade (Casco Antiguo-Panamá Viejo) na lista de Patrimônio Mundial em Perigo”.
Mas, embora o corpo técnico tenha decidido contra a obra, a Assembleia decidiu, por voto, não incluir o marco histórico na lista negra da UNESCO. O Comitê do Patrimônio Mundial, porém, fez diversas recomendações ao governo panamenho, entre elas a visita de um grupo de técnicos da UNESCO e do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios para avaliar a situação até fevereiro de 2015, quando o Comitê irá avaliar novamente se deve incluir ou não Casco Antiguo-Panamá Viejo na lista de Patrimônio em Risco.

Prejuízos ambientais e disputas judiciais

Em cumprimento à lei panamenha, o Ministério de Obras Públicas fez um estudo de impacto ambiental da construção do viaduto em que reconhece entre os possíveis impactos ambientais provocados pela obra a contaminação da água do mar pelo manejo inadequado de resíduos e pelo derrame acidental de combustíveis e graxas; o transporte e acumulação de sedimentos; a contaminação do ar por ruído, pó e emissão de gases pelos veículos; a perda do cenário e paisagem natural e riscos ao patrimônio subaquático.

O governo panamenho, porém, liberou a obra, anunciada como a grande solução para o problema de tráfego. Segundo o Ministério de Obras Públicas, o túnel previsto no projeto licitado era apenas “uma referência básica de design”, e a empresa ganhadora poderia apresentar um novo projeto, desde que mais barato – o projeto atual custa US$ 103 milhões a menos que o previsto. “Além da construção, a manutenção também fica mais em conta do que a opção do túnel”, explicou o ministério em uma nota oficial, que prossegue: “A ponte marinha, além de constituir-se na solução viária mais eficiente, oferecerá novos espaços e cenários de uso público que redundarão em benefícios econômicos, sociais e culturais para todos os panamenhos”.

Um benefício que é rechaçado pelos moradores de Casco Antiguo, como Patrizia Pinzón, presidente da Associação de Vizinhos e Amigos de Casco Antiguo: “Vão alterar as marés, aumentar a poluição com as fumaças dos carros, o barulho, colocam em perigo o Patrimônio da Humanidade e isso não vai resolver o problema do trânsito: é só um jeito mais rápido de chegar a uma ponte que já está super congestionada”, diz.
O documento técnico da Unesco destaca o mesmo problema apontado por Patrícia: “Não há justificativas fundamentadas que indiquem que o viaduto vai trazer soluções de longo prazo de maneira eficaz e, sobretudo, de forma sustentável para essas questões de trânsito”

À Pública, a Odebrecht informou através da sua assessoria que “igual a todos os projetos que realizam, com o Projeto Cinta Costera 3, a empresa cumpriu totalmente a lei panamenha e as disposições das autoridades do país”. Além disso, a empresa afirma que “até onde tivemos conhecimento, nenhuma organização apresentou denúncia diante das autoridades correspondentes sobre essas supostas violações da lei”.

Não é o que dizem as pessoas contrárias às obras. A Fundação Calicanto apresentou uma demanda no Tribunal Administrativo de Contratações Públicas pedindo a anulação da licitação que a Odebrecht ganhou para construir a fase três do Cinta Costera. O pedido foi negado e o advogado Ramón Arias, que faz parte do escritório que protocolou a interpelação, entrou com recurso na Suprema Corte Federal reafirmando o pedido de cancelamento da licitação.

No documento, ao qual a Pública teve acesso, são levantados 22 considerações contrárias a obra, alegando essencialmente que a licitação contrariou normas e leis panamenhas de proteção ao patrimônio e de contratos públicos. As considerações 13° e 14°, por exemplo, afirmam que “por se tratar de um projeto que será construído dentro do Conjunto Monumental Histórico de Casco Antiguo na cidade do Panamá, os documentos que formam a licitação deveriam estar sujeitos a legislação protetora deste sítio histórico, o que não ocorreu. A entidade licitante, neste caso, o Ministério de Obras Públicas não percebeu que a alternativa opcional que é dada na licitação aos proponentes é ilegal, já que a normativa proíbe expressamente os aterros ou corredores marítimos construídos fora da muralha da cidade do Panamá”.

Essa apelação, que segundo Arias “nunca foi levada adiante pela Suprema Corte”, foi feita antes do anúncio da construção do viaduto, quando o único documento público sobre a obra era o contrato firmado entre a Odebrecht e o MOP em que se previa a construção de um túnel, mas que deixava aberta a opção da empresa escolher outra obra mais barata, com menor custo de manutenção.

Também há diversos questionamentos levantados por membros do “Orgullo” e por advogados, no Ministério de Finanças, no Instituto Nacional de Cultura, no Ministério de Obras Públicas. Nenhum deles obteve alguma resposta favorável.

Vista a partir de Casco Viejo, antes da obra monumental da Odebrecht

Conflito de interesses

Desde 2008 o Comitê do Patrimônio Mundial vem expressando sua preocupação com o estado de conservação do sítio arqueológico Casco Antiguo – Panamá Viejo: “São diversos prédios históricos em deterioração, conflitos de interesse sobre o uso, administração e conservação da área, deficiência na implementação de uma lei para proteger o local, demolições ao redor, retirada forçada de ocupantes e posseiros do local”, diz o relatório daquele ano.

Em 2009 uma missão da entidade avaliou que as obras da Cinta Costera – então em fase inicial – haviam sido feitas “sem a realização de estudos de impacto ambiental ou de dano ao patrimônio”, e pior, “sem informar o Comitê do Patrimônio Mundial” – os locais tombados pela Unesco passam a “pertencer a toda Humanidade” e os países são obrigados a relatar os eventos que se referem a cada sítio.

Além disso, a missão observou que a Fase 3 do projeto – a construção do viaduto pela Odebrecht – poderia ter um impacto sobre o sítio Casco Antiguo-Panamá Viejo e pediu ao Panamá a apresentação de um relatório final, incluindo a análise e monitoramento dos impactos. Desde então, os repetidos relatórios entregues pelo governo panamenho foram considerados insuficientes pelo corpo técnico do órgão.

Por isso, os ativistas que lutam pela proteção do patrimônio, revoltaram-se com a decisão da Assembleia da UNESCO de não incluir o sítio arqueológico panamenho entre os patrimônios em risco. “Quem mais perde com isso, fora as pessoas de Casco, é a UNESCO. Que credibilidade eles vão ter? O documento deles pode dizer qualquer coisa, mas não muda a realidade. O fato é que o viaduto está quase pronto e eles poderiam ter impedido isso”, diz Patrizia Pinzón.

Durante a preparação da Assembléia, o grupo “Orgullo” enviou cartas, documentos e fotografias para denunciar os problemas com as obras a cada um dos delegados oficiais, bem como Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU. O governo panamenho – que não tinha direito a voto na Assembleia – levou para a reunião da UNESCO uma delegação de 13 pessoas – uma das maiores presentes no evento. Havia representantes do Patrimônio Histórico do Panamá, o ministro das relações exteriores, da Oficina Casco Antiguo, de consultorias e do Instituto Nacional de Cultura.

Entre eles, também, havia dois funcionários e um consultor da Odebrecht. Yuri Kertzman, diretor do Projeto Cinta Costera, Helio Boleira, diretor sênior da empresa e Juan Herreros, consultor externo de arquitetura, aparecem na lista oficial da UNESCO como sendo membros do Instituto Nacional de Cultura.

Em nota à Pública, a empresa brasileira admitiu que seus três representantes estiveram na delegação do Panamá, a convite do Instituto Nacional. Todos os gastos, segundo a nota, foram pagos pela Odebrecht. Na lista oficial do evento, porém, eles não são assinalados como enviados da Odebrecht.

A delegação panamenha também contou com a ajuda da delegação do Brasil, de acordo com a imprensa do Panamá. Segundo jornais, a delegação brasileira apresentou um projeto de um documento com modificações ao estipulado pelo Comitê, evitando a inclusão de Casco Antiguo na lista de Patrimônio em Risco. O Itamaraty não respondeu aos pedidos de explicação da Pública.

“Com essa decisão de não colocar Casco Antiguo-Panamá Viejo na lista de Patrimônio em Risco, ficou evidente que a discussão do Comitê de Patrimônio Mundial da UNESCO é política e não técnica”, acusa o advogado Félix Wing. “ São os governos que tomam as decisões e eles decidem pensando que provavelmente, em um futuro não distante, tomarão medidas parecidas e seus pares irão devolver o favor. O que é sumariamente deplorável”.

Odebrecht no Panamá: US$ 4,5 bilhões em obras

Segundo o relatório anual da Odebrecht, a América Latina e Caribe já são a segunda área no volume de negócios da empresa, representando 20% do total, com um faturamento US$ 7,3 bilhões apenas em 2011.

Em nota para a Pública, a Odebrecht afirmou que está no Panamá desde 2004, tendo participado de licitações e ganhado contratos como a construção do Sistema de irrigação Remigio Rojas, a Concessão da Estrada Madden-Colón, o Saneamento da Cidade e da Baía do Panamá, a Renovação Urbana de Curundú, além do primeiro Metrô do país, na cidade do Panamá e a expansão do Aeroporto Internacional de Tocumen. A presença da empresa cresceu vertiginosamente durante o governo de Ricardo Martinelli, do partido Cambio Democrático, no cargo desde 2009.

Segundo o diário La Prensa, a Odebrecht foi selecionada em todas as grandes licitações do governo de Martinelli, além das obras de extensão da estrada Panamá-Colón – esta, sem licitação. O diário afirma que a Odebrecht conseguiu contratos de US$ 4,28 bilhões com o governo panamenho desde que chegou ao país.

A Odebrecht não divulga os valores de seus contratos por país e nem por projetos.

Em maio de 2011, o ex-presidente Lula viajou ao país a convite da Odebrecht, onde participou de um jantar oferecido pelo diretor da empresa ao lado de Martinelli e os ministros da Economia, Obras Públicas e Assuntos do Canal. Durante a visita, Lula participou da inauguração da primeira etapa da Cinta Costera ao lado de ministros e do presidente panamenho. Segundo a empreiteira, “assuntos de interesse da Odebrecht não constaram da pauta dos encontros” de Lula.

 

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