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Nos anos 1970, a Fazenda Guarani aprisionou índios "delinquentes" e grupos que lutavam por terras. “Ninguém podia entrar e ninguém podia sair”, conta um ex-confinado

Reportagem
25 de junho de 2013
09:00
Este artigo tem mais de 10 ano

Localizada poucas horas a nordeste de Belo Horizonte (MG), próxima à região da Serra do Cipó, a Fazenda Guarani foi, a partir do fim de 1972, uma continuação da experiência de confinamento de índios iniciada quatro anos antes, com a instalação do Reformatório Krenak em Resplendor (MG).

O Posto Indígena Guido Marlière, que abrigava o reformatório e os índios krenaks, vinha há anos tendo partes de suas terras ocupadas por fazendeiros. Algo que ocorria com a anuência do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão federal que antecedeu a Fundação Nacional do Índio (Funai). Durante décadas, foi política oficial do SPI o arrendamento a terceiros de lotes nas áreas dos índios. “Esse foi o instrumento que patrocinou oficialmente a invasão de quase todas as terras indígenas até então demarcadas em todo o país”, escreve Egon Reck, experiente ativista do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

A pressão para que fosse extinto o Posto Indígena Guido Marlière levou à negociação de uma permuta entre a Funai e o governo mineiro. As terras foram cedidas aos fazendeiros, e, em contrapartida, o órgão federal recebeu a Fazenda Guarani, uma área pertencente à Polícia Militar, no município de Carmésia (MG).  Em 1972, concretizado o acordo, a Ajudância Minas Bahia, órgão regional da Funai, transferiu para lá todos os indígenas de Resplendor – os krenaks e os presos do reformatório.

“Fomos despejados dentro de um vagão de carga, que nem animais”, conta Edmar Krenak, que era criança quando ocorreu a transferência. “Eu lembro da tristeza dos índios mais velhos. Meu pai mesmo não queria sair de dentro da casa. Armou-se de arco e flecha, deu um trabalho e teve que ir algemado”. Nesse novo “lar”, os krenaks relatam diversas privações. “Lá era muito frio e não tinha nada para comer. Só banana”, lembra Maria Sônia Krenak..

Na luta pelas terras em Aracruz

A Fazenda Guarani assumiu o papel, antes exercido pelo Reformatório Krenak, de central carcerária indígena da ditadura. Para o local passaram a ser enviados diversos os índios e comunidades envolvidos em litígios Brasil afora.

“Quando começamos a lutar pela demarcação das terras aqui no município de Aracruz (ES), eles levaram a gente para lá”, revela Toninho Guarani, indígena guarani mbyá que passou parte de sua adolescência em naquele local.“Eles colocavam a própria polícia militar para vigiar. Ninguém podia entrar e ninguém podia sair.”

Os guaranis, explica Toninho, caminham pelo mundo seguindo revelações. E foi uma revelação de sua avó que levou seu grupo a iniciar, ainda na década de 1940, uma caminhada de contornos épicos, partindo do sul do país em busca da chamada “terra sem males” – o local onde, segundo a crença da etnia, é possível alcançar um estado de perfeição e ascender a uma espécie de paraíso.

Já na década de 1960, eles chegaram em Aracruz (ES), então um município litorâneo com boa parte da sua fauna e mata preservados. Mas sobre aquele lugar, uma terra supostamente propícia para a busca da “terra sem males”, também repousavam planos para viabilizar enormes plantações de eucalipto. E o choque de interesses levou os indígenas, sob pressão e a contragosto, para a Fazenda Guarani.

“Em Minas Gerais e no Espírito Santo, se houve alguma resistência de um povo indígena, eles pegavam essas pessoas e levavam pra lá”, diz Toninho, que perdeu um irmão na Fazenda Guarani, morto devido a uma picada de cobra.

O confinamento, avalia ele, foi uma tentativa de impor o sedentarismo aos guaranis, cujas contínuas migrações pelo sul do continente, frequentemente associadas a motivações espirituais, são amplamente documentadas desde o século XIX. “Foi uma violação dos direitos sagrados dos nossos líderes religiosos. Nós lutamos para que o Estado brasileiro reconheça o direito do nosso povo de fazer essas caminhadas”, reivindica Toninho.

Depois de alguns anos, os guaranis fugiram da fazenda e empreenderam nova peregrinação – percorrendo longos trechos de carona ou mesmo a pé. Em 1983, a Justiça determinou a homologação da área indígena ocupada pelos guaranis naquele município.

A anuência dos altos escalões

Em 1973, pouco após a transferência do Reformatório Krenak para a Fazenda Guarani, mudou também a chefia da Ajudância Minas Bahia da Funai. Assumiu o posto João Geraldo Itatuitim Ruas, um quadro histórico do SPI e um dos primeiros servidores de origem indígenas a integrarem o serviço público brasileiro.

Itatuitim conta ter sido salvo da morte por uma missionária católica, após sua mãe morrer no parto – segundo a tradição de sua etnia, do Alto Xingu, as crianças que não recebiam o leite materno supostamente eram sacrificadas. Entregue ao Marechal Rondon, foi criado entre brancos e estudou com a mãe de Darcy Ribeiro antes de ingressar nas fileiras do órgão indigenista.

Com essa biografia, Itatuitim, sofreu ao se tornar encarregado da Fazenda Guarani ao assumir a Ajucância. “Imagina o que era para mim, como índio, ouvir a ordem do dia do cabo Vicente (policial militar e chefe local do posto indígena), botando todos os presidiários em fila indiana, antes de tomarem um café corrido, ameaçando baixar o cacete em quem andasse errado. E alertando que, para aquele que fugisse, havia quatro cachorros policiais, treinados e farejadores, prontos para agir”, exemplifica. “Eles não trabalhavam no sábado, que era dia de lavar a roupa, costurar, essas coisas todas. Mas, durante a semana, era trabalho escravo!”

Itatuitim conta ter procurado o general Bandeira de Mello, então presidente da Funai, para discutir o fim da instituição correcional. Do general, diz ele, ouviu a seguinte pergunta: “Por que você vai salvar 50 índios que já estão condenados à morte?”.

Não satisfeito, o chefe da Ajudância Minas Bahia procurou o então ministro do Interior – o engenheiro Maurício Rangel Reis, morto em 1986. “Ao invés de me tratar com educação, ele me maltratou. Disse que eu queria perdoar, e ameaçou me demitir”, relembra.

Mesmo assim, Itatuitim afirma ter começado a enviar diversos índios que estavam confinados na Fazenda Guarani de volta às suas aldeias de origem. Algo que, de acordo com ele, teria contribuído para a sua demissão da Funai, pouco tempo depois.

Além dos “infratores”, a Fazenda Guarani também recebia indígenas para “tratamento mental”. Apesar, no local, de não haver nenhum atendimento psiquiátrico disponível.

Um deles foi um índio da etnia campa que, segundo diz sua ficha individual, já havia sido clinicamente diagnosticado como esquizofrênico. Entre outras excentricidades, ele dizia ser dono de vários automóveis e aviões, além de amigo íntimo do mandatário supremo da nação. “Sempre que um avião passa sobre esse reformatório ele pula e grita, dizendo que é o presidente vindo buscá-lo”, escreveu o chefe de posto a seu respeito.

As denúncias sobre o uso da Fazenda Guarani como local de prisão, confinamento ou despejo de índios “sem terra” seguiram até o final da década de 1970. Atualmente, lá vive apenas um grupo pataxó, cujos primeiros representantes foram remanejados por conta de conflitos fundiários em Porto Seguro (BA), acompanhados de novas levas após a “desmilitarização” da fazenda. Hoje, a comunidade pataxó na Fazenda Guarani é composta por 280 pessoas.

Como resquícios da presença da polícia militar, o local ainda conserva as ruínas da antiga capela e do engenho. O casarão que servia como sede para os destacamentos policiais foi convertido em moradia para alguns dos indígenas. E a antiga solitária – um cubículo de, no máximo, quatro metros quadrados – virou um depósito onde se empilham os cachos de banana colhidos nas redondezas.

André Campos, 31 anos, é autor de reportagens e documentários investigativos e pesquisa há cinco anos as cadeias indígenas da ditadura.  Esta reportagem foi realizada através do Concurso de Microbolsas de Reportagem da Pública.

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