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O ex-camisa 8 alvinegro critica autoritarismo e traça paralelo com o período da ditadura, quando lutou pelo passe livre dos jogadores

Entrevista
13 de julho de 2012
15:00
Este artigo tem mais de 11 ano

“Homem livre em futebol, homem livre eu só conheço um: Afonsinho. Este sim pode dizer com suas palavras que deu o grito de independência ou morte.” A frase, dita em 1972, foi um desabafo de ninguém menos que Pelé. À época, o Rei queria assinar seu último contrato com o Santos, por um período de dois anos, e encerrar sua carreira. Os dirigentes do Santos tentaram impedi-lo e tinham a seu favor um grande vácuo de legislação específica que imperava nas relações de trabalho no futebol. A própria Lei do Passe (6.354/76), que é posterior a este período, instituiu a prática que já era comum entre os dirigentes: ela definia um “passe”, ou seja, um valor para cada jogador e os atletas só poderiam sair de seus clubes mediante o pagamento desse montante. Na prática, o jogador de futebol deixava de ser um trabalhador comum, que pode trocar de empresa (ou de clube) após o término de seu vínculo. Ele dependia do pagamento desse valor para sair e, assim, os dirigentes podiam prender suas estrelas e ter assegurada suas fontes de renda: os passes. A situação só foi alterada com a Lei Pelé (9.615/98).

Quarenta anos depois de ter se tornado símbolo da luta pela liberdade dos jogadores, Afonsinho continua a denunciar o autoritarismo no futebol, como não receou fazer no Brasil de Médici, quando o jogador rebelde, barbudo e cabeludo, se recusou a assinar chamado contrato de gaveta, aquele que o jogador assinava (muitas vezes em branco),que era registrado quando convinha ao clube.

Para seguir jogando, Afonsinho firmou este vínculo e aí já teve problemas por suas posições. O Alvinegro queria sua estrela (sim, ele era bom de bola) de volta, mas o queria diferente: barba e cabelos cortados, comportado e adequado ao status quo do futebol. Afonsinho disse não, e foi à Justiça brigar pelo direito de ter “passe livre”, ou seja, o direito de ir para outro clube quando seu contrato acabasse. Venceu, e tornou-se o primeiro atleta a ter passe livre. Sua história virou filme – o documentário “Linha de Passe” de Osvaldo Caldeira (no fim do post) – e Gilberto Gil se referiu a ele.

E o mundo do futebol continua autoritário, diz, o jogador que como resultado de sua luta foi boicotado na seleção, e decidiu estudar medicina (ele se formou enquanto ainda jogava). Sobre a Copa de 2014, Afonsinho se declara otimista, apesar de apontar problemas em seus preparativos como o desperdício de recursos públicos. “Eu não fecho os olhos para essas coisas, mas entre fazer e não fazer, acho melhor fazer porque é uma oportunidade”.

Leia a entrevista.

O que você acha do Brasil  sediar  a Copa do Mundo de 2014?

Acho que é uma oportunidade de se avançar em algumas questões, já que estamos também em um momento econômico favorável também. É uma chance que temos de progredir, principalmente em questões de urbanização, transporte, por conta disso. Um pretexto, vamos colocar assim, para avançar em algumas coisas. Mas a gente tem uma coisa nossa de trabalhar sempre em cima do laço nos prazos, nos acabamentos, Então eu vejo que existe essa oportunidade, mas acompanhada de outras coisas nossas como superfaturamentos, desperdício de recursos, etc.  Já na outra parte, de sentimento, de vibração, acho que a Copa pega o Brasil não em um grande momento do seu futebol. Vem aí a Copa das Confederações ano que vem, a Copa em seguida, a gente já está bem em cima da hora e ainda não tem uma seleção. Sediar a Copa vai nos ajudar [dentro de campo], porque sendo a Copa em casa é um fator positivo, mas para acontecer uma coisa bonita, em termos de futebol, está difícil. Tomara que a gente consiga.

Qual o legado que você espera para a população brasileira? É possível  o  Brasil  dar um salto com esse megaevento?

A Copa obriga a fazer uma série de obras, então vai ter muita coisa boa, em termos de transporte, por exemplo. A identificação das pessoas com o esporte também vai melhorar, progredir. O legado poderia ser muito melhor, mas entre fazer e não fazer… acho que alguma coisa fica em termos de transporte, de estádios. Fala-se muito dos estádios que estão sendo feitos onde praticamente não há futebol correspondente, como, por exemplo, na região Norte. Mas acho que isso sempre ajuda a impulsionar. Mas eu vejo essa questão dos desperdícios de dinheiro, como uma coisa que me provoca muito. Mas eu sou otimista. Eu não fecho os olhos para essas coisas, mas eu acho melhor fazer porque é uma oportunidade.

O que o motivou a defender a causa do passe livre?

Isso aí é uma coisa meio histórica. Quando eu comecei a jogar futebol e comecei a entrar na qualificação de amador em equipes profissionais de futebol, já não era uma coisa da minha formação. Meu pai era um cara que, embora de origem muito simples, se desenvolveu muito na vida, era muito inteligente e interessado.  E já quando eu entrei no futebol, comecei a jogar como amador oficialmente – embora jogasse em um time profissional. Eu jogava no XV de Jaú, que era um time profissional, e a legislação na época permitia aproveitar até quatro jogadores com contrato de amador na equipe profissional. No próprio Botafogo, eu não tinha o que se chamava de ‘contrato de gaveta’, que era a maneira de prender o jogador, ou seja, você tinha o contrato e não era registrado, mas quando era interessante para o clube prender o jogador, isso era usado . Joguei nessa condição no XV de Jaú, fui para o Botafogo e joguei nessa mesma condição. No Botafogo, que já era uma das maiores equipes do Brasil da época, essa ideia do passe livre já existia. Chegou um momento em que eu já tinha minha carreira como jogador de futebol profissional mas não tinha contrato. Aí eu assinei o contrato – já com dois anos de carreira no Botafogo – e bastou isso acontecer para começarem os problemas de relacionamento profissional e pessoal. Então eu fui cada vez mais sentindo que aquilo de ter passe livre, era um anseio do jogador de futebol profissional, porque os vínculos e os contratos feitos no futebol profissionais eram fraquíssimos. Aí me agarrei nessa ideia até conseguir o meu passe livre.

E você se sentiu muito solitário nessa luta? Sentiu que faltou apoio dos colegas de profissão? 

Movimento de classe, nesse sentido, não houve e até hoje não há. Agora, se aproximando uma Copa do Mundo, isso é uma coisa que me aflige cada dia mais. Vem aí mais uma Copa no Brasil e o relacionamento profissional, as relações de trabalho no futebol ainda são muito atrasadas. Você não vê ninguém falar nada sobre isso, pelo menos por enquanto. Eu de vez em quando dou umas “ciscadas” para ver se alguma coisa está rolando, mas agora que eu já não sou mais jogador, é mais difícil de participar de alguma coisa. Mas esse incômodo com essas relações de trabalho cresceu muito dentro de mim naquela época e não dava mais para voltar, mesmo estando sozinho. Eu fiquei realmente mergulhado naquela situação e estava nela para o que desse e viesse. Talvez por isso eu tenha conseguido o que eu consegui. Depois até aconteceram outros casos como do Raul [Plassman, ex-goleiro de Flamengo e Cruzeiro], do Spencer [ex-volante de Atlético-MG e Cruzeiro], e a coisa foi se desenvolvendo de outra maneira e o passe foi sendo liberado com um paralelo muito próximo à situação da escravatura negra, ou seja, em episódios. No futebol foi assim: começou com um jogador tendo direito a 15%, depois mais um tanto, outro tanto… Até se extinguir, acabar o passe.

O que você acha que ainda está errado nas relações de trabalho no futebol?

Acho que a maneira de funcionar do esporte e do futebol particularmente. O futebol profissional tem um sistema “Fifa”, que é um sistema de característica medieval. O próprio poder no futebol funciona como feudos, que chegam a passar entre famílias. Então é um atraso muito grande, e não só para o jogador. O torcedor, que talvez seja mais importante do que tudo, é excluído do processo. No relacionamento, os clubes estruturalmente, juridicamente são muito fechados. E a situação do torcedor é muito séria, muito violenta. O torcedor é negociado, é vendido quando o dirigente vende os direitos de transmissão, marketing na camisa, etc. Isso é compra e venda do torcedor, visto como um consumidor. E ao mesmo tempo, ele não tem poder praticamente nenhum. Então acho uma coisa muito séria, você é vendido um dia para uma marca, um dia para outra. E o sistema político e jurídico dos clubes é muito desigual. Vejo como consequência disso as manifestações de violência do torcedor, por exemplo, que têm que ser entendidas como uma coisa mais complexa.

Você acha que teve a sua carreira na Seleção e no próprio futebol boicotada por conta das suas posições políticas e da sua contestação ao status quo do futebol no período da Ditadura Militar?

Isso é evidente. Acho que essa foi uma opção minha, quando resolvi lutar pelo passe em um momento político e social de repressão ditatorial. Certamente eu teria outras oportunidades, outras vivências se eu não tivesse essa postura. Você tem essa coisa objetiva mesmo de ser profissional de um esporte coletivo, você com o seu passe, você conquista e tal. Existia até uma ameaça dos clubes não me aceitarem por eu ter o meu passe. Um dos pontos mais importantes foi eu ter conseguido levar a minha carreira adiante, com passe livre, individualmente. Jogar e ir bem em alguns clubes foi uma vitória muito importante. Objetivamente eu tive reações de clubes, até de jogadores profissionais, mais fechados e limitados, que reagiam às minhas ideias. Você imagina um jogador de passe livre, no meio de 20, 30 “presos”, “vinculados”. Passei algumas dificuldades em dois ou três clubes por conta de reações de atletas, principalmente na minha passagem pelo Flamengo. No conjunto sempre tem posições diferentes, mas isso era do jogo . Eu tive que ir em frente.

Você acha que a Ditadura Militar atrapalhou o desenvolvimento do futebol brasileiro?

Eu penso que não tem como o futebol ficar isolado, fora da sociedade a que pertence. O poder nacional acaba abrangendo várias esferas e o futebol é uma delas. Uma ditadura é um período de fechamento, de limitação, tudo fica retardado, prejudicado. Até hoje o Brasil sofre consequências disso e no futebol é evidente. Houve intervenção militar direta nos próprios clubes. Muitos militares passaram a trabalhar diretamente nos clubes, teve essa interferência direta. Isso fez com que até hoje o futebol sofra as consequências. Até hoje todo mundo queixa-se de que o futebol perdeu as características mais brasileiras, como sua originalidade. Eu vejo o futebol como uma manifestação, como uma forma de expressão de uma coletividade. E as consequências continuam por muito tempo.

Como você avalia a gestão de Ricardo Teixeira à frente da CBF?

Eu não tinha nem pensado nisso, mas ele é o exemplo concreto de tudo isso que a gente estava falando. Como é que ele chegou a ser dirigente da CBF e depois ter a importância para a Fifa que ele alcançou? A relação dele com o futebol era unicamente ser genro do João Havelange, entendeu? Não digo que ele tinha que ter sido jogador, o melhor jogador não é o melhor dirigente, são coisas diferentes. Mas ele chegou ao comando da CBF com um nível de poder extremo que adquiriu com uma relação familiar. Aí ele atuou da maneira como pôde atuar, dentro dessa ideia de poder no futebol, que é bem feudal. E o sistema Fifa é isso.

Você vê um processo de elitização vigente no futebol atualmente? A Copa do Mundo pode ser um símbolo disso?

À medida em que o futebol fica mais “caro”, em todos os sentidos, ele fica cada vez mais elitizado. O interesse financeiro vem à frente e é um retrato do que é o futebol. Existe cada vez mais dinheiro e o espetáculo empobrece. É uma contradição enorme. Os estádios são modernos, sistemas, informatização, progresso tecnológico. Mas o espetáculo empobrece.

A Copa do Mundo ainda é usada como um instrumento político, como foi em 1970?

Claramente. Não tenha dúvidas disso.

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