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Meio Ambiente e Minas e Energia não falam a mesma língua sobre transição energética

Secretária do Clima alerta que não há plano claro no país; ministro compara críticas com “complexo de vira-lata”

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5 de abril de 2024
06:00
Ouça Giovana Girardi

Giovana Girardi

5 de abril de 2024 · Secretária do Clima alerta que não há plano claro no país; ministro compara críticas com “complexo de vira-lata”

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O atrito entre os ministérios do Meio Ambiente (MMA) e das Minas e Energia (MME) que se desenrola há quase um ano no governo Lula em torno do aumento da exploração de petróleo no Brasil ganhou um novo round público nesta semana.

A secretária de Mudança do Clima do MMA, Ana Toni, disse, em entrevista à Folha de S.Paulo, que ainda não viu no Brasil nenhuma estratégia clara que direcione recursos do petróleo para o financiamento da transição energética. O argumento é bastante usado pela indústria de combustíveis fósseis – pela Petrobras, inclusive – para justificar a continuidade dos investimentos no setor. Somente com os lucros dos fósseis seria possível fazer a virada para fontes de energia mais limpas. 

“Essa ideia [de usar recursos de petróleo e gás fóssil para financiar a transição energética] não surgiu no Brasil, a Noruega faz isso com o fundo soberano deles. Mas ali tem uma estratégia específica. Não estou falando que é certa, mas eles desenharam o fundo para isso. A gente, aqui, não. Se a proposta fosse ‘vou explorar o nosso petróleo para descarbonizar a economia como um todo, isso vai demorar cinco, dez anos, e, com esse recurso, vou substituir os plásticos primeiro, depois os carros, vou pagar para todo o mundo ter carro elétrico…’, seria algo a ser debatido. Eu ainda não vi essa proposta aqui no Brasil.”

E complementou: “Só acho que a gente não está mais nesse momento de achar que pode ter esse luxo [de seguir explorando]. Como falei, o nosso pior inimigo é o tempo. Se explorar, alguém vai usar”, afirmou Toni.

Ato contínuo, algumas horas depois que o texto entrou no ar, na noite de domingo (31), foi a vez do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, se manifestar. À mesma Folha, ele reagiu ao comentário de Toni dizendo que o governo tem um fundo de R$ 33,8 bilhões – o Fundo Social –, bancado pelos combustíveis fósseis que poderia ser usado para financiar a transição. E que esse valor poderia ficar ainda maior com a exploração de petróleo na chamada Margem Equatorial, onde fica a polêmica foz do Amazonas. 

Silveira não disse na entrevista se esse dinheiro vem ou não sendo usado para esse fim. Dois dias depois, nesta quarta (3), o jornal voltou a falar com ele, agora em uma entrevista mais longa. Em meio a respostas bastante confusas, o ministro não foi capaz de responder se existe de fato um plano de transição energética no Brasil. Muito menos estipular um prazo de quanto tempo ela vai demorar.

Quando os repórteres insistem, Silveira tenta inverter o jogo. Disse não entender quem critica o setor energético brasileiro, em referência a Toni, falou que precisamos “nos afastar do complexo de vira-latas” e que o Brasil deve se orgulhar de “ser o líder da transição energética global”. Ainda afirmou que “nenhum país do mundo tem mais autoridade para discutir o tema do que o Brasil”. 

Para depois jogar um balde de água fria: “Agora, em quanto tempo e de que forma a transição energética deve se dar, é [sobre isso] que questiono a colega. Em nenhum lugar do mundo podem afirmar em quanto tempo nós vamos poder abrir mão das fontes energéticas fósseis de forma segura, científica e economicamente”.

Depois ele mencionou novamente o Fundo Social, que é alimentado com recursos do pré-sal. Mas como o nome diz, foi planejado para outros usos, como educação e saúde. E hoje serve para manter o superávit primário, segundo o ministro mesmo explicou. 

Deixe-me ver se entendi. Ele alegou que o recurso para a transição já existe, poderia aumentar ainda mais, só que ele não é usado para esse fim. Quer dizer, na prática, então ele não existe, né? Ao menos não para a transição energética. Mas aí a saída é aumentar esse recurso, porque, aí sim, ele vai ser usado com esse propósito? Bem…

Sempre me volta à cabeça, nesses momentos, que, em todo o mundo, a indústria de óleo e gás responde por apenas 1% dos investimentos em energia limpa.

Mas, nos planos do ministro, bora continuar furando poços. Até quando, ministro? Ah, até “conseguir alcançar um IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] à altura do que atingiram os países industrializados”, disse ele.

No velho papo de que se trata de uma riqueza da qual não se pode abrir mão e de que ela é fundamental para o país se desenvolver, Silveira nem corou ao insistir em não querer pensar em um prazo para pararmos de ofertar ao mundo o principal responsável pela crise climática que estamos vivendo. Até porque, para ele, “transição energética, como o Brasil, ninguém está fazendo no mundo”.

Tudo bem, dá para tentar ser otimista e interpretar que Silveira estava levantando uma discussão sobre qual seria a melhor destinação dos royalties do petróleo, se eles poderiam já estar ajudando na transição. De repente a referência de alcançar um valor x no IDH poderia servir como um parâmetro para marcar o ponto de virada. Pode ser. É saudável ter essa discussão no Brasil.

Mas não podemos perder de vista o fator urgência. Quando falamos de mudanças climáticas, “nosso maior inimigo é o tempo”, como disse Ana Toni em sua entrevista. Porque, enquanto vai se empurrando a transição energética com a barriga – e, justiça seja feita, isso não é exclusividade do Brasil –, o planeta continua rapidamente aquecendo. E os efeitos disso estão se intensificando e se retroalimentando de um jeito bastante perigoso. 

Silveira diz que não dá para se afirmar quando poderemos abrir mão dos fósseis, mas a ciência é clara em dizer que, se as emissões não caírem à metade até 2030 e chegarem ao famigerado “net zero” até 2050, o aumento da temperatura vai superar o 1,5 ºC. Há quem diga que essa meta já era.

Não tem mágica: quanto mais petróleo, carvão e gás natural forem queimados, mais quente a Terra vai ficar.

Por uma dessas coincidências providenciais, nesta quinta-feira (4) foi lançado um levantamento que buscou calcular quanta lenha as grandes petroleiras do mundo já jogaram nessa fogueira.

O relatório do think tank inglês Influence Map quantificou a contribuição dos maiores produtores mundiais de petróleo, gás, carvão e cimento para as emissões globais de gás carbônico. 

Segundo o levantamento, apenas 57 empresas em todo o mundo responderam por 80% das emissões globais de CO2 provenientes desses setores desde o Acordo de Paris – tratado que trouxe a meta de o mundo tentar conter o aquecimento global a bem menos de 2 ºC, com esforços para ficar em 1,5 ºC, e foi fechado pela maioria dos países em 2015. 

Apesar da sinalização do acordo para que se pisasse no freio, o movimento foi na direção oposta. De acordo com o relatório, a maioria das empresas produziu mais combustíveis fósseis nos sete anos após o acordo do que nos sete anos antes de sua adoção.

Entre essas empresas estão pesos-pesados do setor, tanto privados quanto estatais, como a Saudi Aramco, a Gazprom, a Coal Indian, a National Iranian Oil Company, a ExxonMobil, a Shell e, adivinha, a Petrobras. A empresa brasileira está entre as top-20 que mais emitiram entre 2016 e 2022 (na 19ª posição).

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