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Novo Código de Mineração pode facilitar o licenciamento da água mineral; ambientalistas temem que mudanças, em votação no Congresso, facilitem a exploração

Reportagem
30 de abril de 2014
09:01
Este artigo tem mais de 9 ano

“Alguém bebe areia? Alguém bebe brita, cascalho? Água não é minério, é vida, é saúde”. A preocupação de Alzira Maria Fernandes, da associação Amar’Água, é com o novo Código de Mineração, em votação no Congresso Nacional. No projeto, a licença para a exploração da água mineral passa a ser feita por uma autorização de aproveitamento dos recursos, do mesmo modo como acontece, por exemplo, com os minerais usados na construção.

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Alzira Fernandes, de São Lourenço, questiona as mudanças na legislação: “água não é minério” (Foto: Marina Almeida)

O deputado mineiro Gabriel Guimarães, presidente da Comissão Especial do Novo Código de Mineração, defende que a mudança não deve interferir na regulação dessas áreas. “Se, por um lado, a autorização simplifica a concessão, ela também dá mais autonomia ao poder público sobre ela”, diz. O modelo em vigor é o de concessão de lavra, em que a União concede o direito de exploração total de uma área a um particular, que pode transferi-lo a um terceiro. Já na autorização é possível, por exemplo, cassar o alvará de explotação a qualquer momento sem a necessidade de indenizar a empresa.

“Na minha interpretação, é uma forma de facilitar o licenciamento ambiental. Estão rebaixando o status da água mineral, que passa a ser explorada como a argila ou a areia que é retirada do rio”, contesta o promotor de justiça Bergson Cardoso Guimarães, que é autor do livro Direitos Coletivos Ambientais e a Exploração (in) Sustentável das Águas Minerais (editora Mandamentos, 2009).Ele explica que atualmente é o Estado que faz o licenciamento ambiental dessas áreas para exploração. Com a alteração, isso poderá ser feito pelo próprio município, com o chamado licenciamento facilitado. O regulamento prático das questões colocadas no novo código, entretanto, só será feito após essa votação, também pelo Congresso.

Minério

Outra questão polêmica é a própria inclusão da água no Código de Mineração. “Minério pressupõe a exploração de uma jazida até a exaustão. A água mineral não pode ser tratada dessa forma, pois é um bem renovável pela própria natureza se for extraída de forma adequada. Até porque os interesses que giram em torno dessa água não são só do explorador. Toda essas cidades de estâncias nasceram por conta do turismo, que até hoje gera empregos e divisas”, diz o promotor Pedro Paulo Aina, de São Lourenço.

“Um minério a princípio pode ser explorado até a exaustão, uma montanha de minério de ferro, por exemplo. Existe essa dúvida se o empreendedor poderia explorar a água até esgotá-la. A legislação não fala sobre isso, não proíbe”, explica o promotor Guimarães. De acordo com ele, os questionamentos são antigos. “A legislação dá conta desse bem coletivo? As fontes estão protegidas? Os estudos que temos hoje garantem uma margem segura para esse perfil de exploração? Como é a relação das cidades com as empresas? Qual a política pública para essa exploração das águas subterrâneas? Será que ela corresponde ao que é necessário para proteger esse bem ou é um viés mais comercial e econômico que dita os padrões dessa legislação?”

Além disso, como a água mineral não é regulada pela Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), com o controle e a participação da sociedade que ela preconiza, acabam ocorrendo distorções. “Em Minas, as exigências do licenciamento ambiental para utilização de um curso d’água comum são muito grandes, preocupadas com o meio ambiente. Já para um minério, o foco é mais a geração de renda, o desenvolvimento do país, mas a água mineral é uma água mais ‘rica’, que deveria ter um licenciamento mais severo”, acredita Janimayri Forastieri de Almeida Albuquerque, do departamento de meio ambiente de São Lourenço. A regulamentação da água mineral é feita por uma legislação estadual, que determina a realização do Relatório e do Plano de Controle Ambiental (RCA/PCA).

As empresas engarrafadoras também não precisam fazer o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), que é uma exigência para obras consideradas de grande impacto. “O Ministério Público questiona isso. Defendemos que a exploração da água mineral exija o EIA/Rima por este ser também um bem cultural e social das comunidades”, diz Bergson Guimarães.

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Leis das águas

A Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/1997) assegura o direito à água à atual e às futuras gerações e promove a gestão participativa no planejamento do uso dos recursos por meio dos Comitês de Bacia Hidrográfica, compostos por usuários (indústrias, empresas), sociedade civil e poder público. A PNRH, também conhecida como Lei das Águas, foi influenciada por uma visão sustentável de uso dos recursos, mas não alterou a gestão da água mineral, que continuou sendo feita pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).

Em 2007, a Resolução 76, do Conselho Nacional de Recursos Hídricos e do DNPM, tentou criar uma comunicação entre esse sistema e o mineral. “A resolução diz que deve haver troca de informações por toda a exploração de água mineral. Se há um empreendimento, o DNPM deveria monitorá-lo e comunicar o Comitê de Bacia, que faria uma avaliação, acompanharia os licenciamentos. Na prática, isso não está ocorrendo”, diz Guimarães. Segundo o promotor, seria preciso que a resolução se tornasse lei e sua determinação, obrigatória, ainda que ela já tenha força legal. Entre as dificuldades para colocá-la em prática, ele cita a desarticulação dos comitês e o número reduzido de servidores do DNPM.

A falta de repasse de verbas é um dos fatores de desarticulação desses comitês em Minas. “O dinheiro de compensações ambientais de Unidades de Conservação, por exemplo, que deveria ir para o Fundo de Recuperação, Proteção e Desenvolvimento Sustentável das Bacias Hidrográficas do Estado de Minas Gerais (Fhidro) não é repassado, pelo menos aqui no sul do estado.”

Suplente do prefeito de São Lourenço no Comitê da Bacia do Rio Verde, Janimayri conta que o Plano Diretor do comitê já foi elaborado e publicado. “Funciona, sim. Precisamos dar uma parada muito grande nos projetos por falta de dinheiro para a manutenção, mas não posso dizer com clareza o que houve”, conta.

Já o Código de Águas Minerais, que rege especificamente esse recurso, é de 1945 – uma época em que a principal função dessas águas era medicinal e ainda não havia se desenvolvido a indústria de engarrafamento. É essa legislação que remete a gestão e o licenciamento desse recurso para o Código de Mineração. Para muitos especialistas, ele está desatualizado e não leva em conta princípios importantes da sociedade atual, como a preocupação com o meio ambiente e a sustentabilidade. Existe, inclusive, uma proposta para alterá-lo no Congresso, mas que nunca foi aprovada. “Está parado, não houve vontade política para votá-lo”, diz Bergson Guimarães.

Mito

“A água mineral era muito associada ao tratamento de saúde nos balneários, não ao consumo como bebida. A indústria de engarrafamento era algo secundário. Com o tempo, as pessoas passaram a querer levar para casa a água daquela fonte que fazia bem, e a água mineral começou se vendida em farmácias. Essa cultura, que se reflete nessa legislação de 1945, foi se transformando muito. Hoje a água é envasada para matar a sede”, conta o professor Reginaldo Bertolo, do Instituto de Geociências da USP. No processo, a água mineral passou a ter um novo valor econômico e a ser utilizada pela indústria, que se aproveitou de brechas dessa legislação, criada para outro uso.

“A água mineral hoje é uma água subterrânea qualquer. Ao analisar a composição química de um volume estatisticamente representativo de águas minerais, percebemos que elas não se diferenciam na composição”, explica Bertolo. Segundo ele, são três os critérios muito comuns para a classificação da água mineral: a ocorrência de fluoreto em concentrações traço (muito pequenas), a temperatura e a radioatividade. “São critérios muito simples. Além disso, não faz sentido para a água envasada, por exemplo, considerar a temperatura na fonte ou a radiotividade, que é temporária devido a um gás, o radônio, que se desprende para a atmosfera assim que a água sai do solo. Qual a diferença? A água potável de mesa [subterrânea comum] não teve sorte de encontrar uma brechinha na legislação para conseguir se encaixar e ter o status de água mineral.”

O professor ainda ressalta que, apesar disso, nem todas as águas minerais são iguais, como é o caso das existentes no Circuito das Águas do sul de Minas Gerais. “Há uma condição geoquímica especial naquela região, que faz com que as águas tenham características químicas bem interessantes e próprias.”

A água da atmosfera, a superficial e a subterrânea formam o ciclo hidrológico e estão interligadas. A água da chuva penetra no solo, abastece os aquíferos e sai como fluxo de base de rios. “Seria natural que o uso dessa água fosse regulado por um órgão do governo que tenha essa visão holística de como a água se comporta no ambiente e consiga fazer um planejamento, considerando todos os seus usos: abastecimento público, recreativo, ecológico; o envase é apenas um deles”, diz o professor.

Interesses comerciais

“A legislação é falha, sim, mas acho que não é por descuido, é falha de propósito. A lei de 1945 tem bastante cuidado com essa riqueza hídrica, mas para o uso que era feito na época, medicinal. Não esperavam que fossemos usá-la para o engarrafamento industrial que temos hoje”, acredita o ativista ambiental Franklin Frederick. Para ele, seria fácil contestar a atual legislação se grandes indústrias não estivessem sendo beneficiadas por ela. “Com o fim dessa medicina de águas, esses municípios entraram em decadência e se tornaram presas fáceis para o processo de privatização desse recurso. E não vejo preocupação concreta de nenhum governo em recuperar esse patrimônio histórico e cultural das cidades.” (leia mais sobre o Circuito das Águas aqui).

Legislação atual não exige o Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) para a extração de água mineral; acima, em fábrica ao lado do parque, Nestlé extrai e engarrafa a água mineral São Lourenço (Foto: Marina Almeida)
Legislação atual não exige o Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) para a extração de água mineral; acima, em fábrica ao lado do parque, Nestlé extrai e engarrafa a água mineral São Lourenço (Foto: Marina Almeida)

O professor Wagner da Costa, da Faculdade de Geografia da USP, ainda ressalta que esses grupos transnacionais costumam atuar de maneira coordenada para defender seus interesses. “Há muita literatura internacional mostrando que esses senhores da água, como são chamadas as grandes empresas que atuam no setor, infiltram-se nos órgãos decisórios, contratando ex-funcionários, por exemplo, para influenciar decisões de caráter político. Digo isso de forma genérica. Não estou acusando ninguém, mas deveria ser feito um estudo sobre isso aqui no Brasil.”

Costa finaliza apontando para a urgência do cuidado com os recursos hídricos, “Com água não dá para falar em sustentabilidade. É um recurso renovável, porém finito: cada vez que agregamos substâncias a ela, diminuímos o volume de água possível de voltar à atmosfera na forma de precipitações.”

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