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Nas cidades do Circuito das Águas, a luta pela preservação ambiental convive com a esperança na retomada dos tratamentos com água mineral

Reportagem
30 de abril de 2014
09:00
Este artigo tem mais de 9 ano

Em Cambuquira, no Circuito das Águas mineiro, os fantasmas de outros tempos estão por toda parte. Antigas construções imponentes têm paredes descascadas e plantas a brotar das frestas, lembrando que o turismo já teve melhores dias na cidade. Ali, os tratamentos feitos com águas minerais, a crenoterapia, movimentavam as ruas amplas e arborizadas de uma das primeiras cidades projetadas do estado.

Na ONG Nova Cambuquira, Marília (segunda da esq. para a direita) defende a preservação das águas para o uso na medicina alternativa e preventiva (Foto: Marina Almeida)
Na ONG Nova Cambuquira, Marília (segunda da esq. para a direita) defende a preservação das águas para o uso na medicina alternativa e preventiva (Foto: Marina Almeida)

Na casa de Marília Noronha, no entanto, o clima pacato do município de 12 mil habitantes dá lugar a discussões indignadas sobre os recursos naturais da região. “Nosso objetivo é preservar as estâncias, não por bairrismo, mas pela potencialidade dessa água para a cura, a medicina alternativa e preventiva. É a nossa história, é o nosso bem maior. Culturalmente é fundamental. Na parte financeira também, sempre nos trouxe turistas”, diz a senhora de voz forte e determinada. Para a ativista, não faz sentido a extração de um bem que já foi reconhecido como medicina alternativa pela Portaria 971/06 do Ministério da Saúde. “É uma conquista que conseguimos em Brasília. Essa riqueza precisa ser revertida em prol do turismo e da saúde pública, já que o próprio governo está pagando tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) com água mineral.” Marília fala de sua luta de mais de 13 anos para a preservação das águas da cidade com a ONG Nova Cambuquira. Uma das principais dificuldades é ter acesso aos dados sobre a exploração. “Todas as informações que conseguimos levantar foram via Justiça. Nós montamos os processos pela internet, não temos advogado. Muitas vezes abri o processo em meu próprio nome, sozinha, mas firme. Descobri que se puser frase em latim é melhor ainda, eles gostam. Adoro in dubio pro natura: na dúvida, se está acabando com água ou não, se a natureza está sendo ameaçada, para tudo.” O avô e o bisavô de Fernanda Brandão Louro eram médicos crenologistas. Hoje, a professora de ciências faz parte da ONG e luta pela continuidade da prática. “São cem anos de tratamento com águas, mas hoje não existe mais. Os médicos não sabem o que é crenologia”, lamenta Marília. E se o turismo já não movimenta a economia da cidade como em outros tempos, a exploração das águas minerais para o engarrafamento também não muda o quadro. Entre julho de 2011 e julho de 2012, por exemplo, o município recebeu de royalties pela exploração, o Cfem, R$ 8.530,40, de acordo com o documento enviado pela Copasa Águas Minerais de Minas, que explora as águas da região, à promotoria de Cambuquira.

Caxambu

Na contramão das discussões sobre a redução da exploração das águas minerais, numa audiência pública em Caxambu, a pauta era o aumento da produção de água engarrafada. No debate, realizado em outubro passado, alguns políticos do município defendiam uma maior exploração, que ajudaria a divulgar o nome da cidade e a trazer mais recursos para o município. “O homem, com sua arrogância, quer manipular tudo sem critério”, contesta Maria Antônia Barreto, a Toninha, da Sociedade de Amigos do Parque das Águas de Caxambu (Ampara). Ela lembra que, assim como em São Lourenço, lá também faltam estudos maiores sobre a capacidade de recarga do aquífero, necessário para determinar a quantidade segura de exploração. “Os antigos guardam um respeito maior, até hoje vêm todo dia pegar água no parque, mas falta a apropriação dessa identidade cultural pelos demais”, diz a psicóloga, que fez pós-graduação em recursos hídricos.

Licitação

Atualmente, a empresa exploradora das águas de Caxambu é a Copasa. No município, assim como nas estâncias de Cambuquira, Lambari e Águas de Contenda (que pertence a Conceição do Rio Verde), a proprietária do Manifesto de Minas – que dá direito à exploração das águas – é a Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (a Codemig, antiga Comig), uma empresa de economia mista que tem o governo estadual como acionista majoritário. A última licitação da Codemig para a exploração das águas minerais da região, ocorrida em 2001 – no mesmo período em que São Lourenço discutia a superexploração pela Nestlé – foi muito questionada pela população e por ONGs como a Ampara e a Nova Cambuquira. “Havia cláusulas absurdas, que incentivavam o aumento da produção e não colocavam limite à exploração”, lembra Toninha. Após uma série de conflitos e manifestações, que resultaram numa Ação Civil Pública ambiental, o edital foi anulado pelo governador do estado. Toninha conta que o segundo edital de licitação trazia uma cláusula que limitava a exploração desenfreada e que dessa vez não houve interesse das empresas em participar. Para garantir a exploração dessas águas, o governo mineiro criou a Copasa – Águas Minerais de Minas, uma subsidiária da Companhia de Saneamento de Minas Gerais, que é a atual detentora dos direitos de exploração nessas cidades.

Águas medicinais

O declínio econômico e no turismo das estâncias hidrominerais brasileiras aconteceu a partir do final da Segunda Guerra Mundial por conta de dois fatores principais: a entrada dos grandes laboratórios farmacêuticos no Brasil e o encerramento das cátedras de Crenoterapia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de Minas Gerais (UFMG).

Rico em fontes minerais, tratamentos de saúde com água podem trazer grande economia para o Brasil, mas faltam estudos sobre os recursos hídricos do país e médicos especialistas na área (Foto: Marina Almeida)
Rico em fontes minerais, tratamentos de saúde com água podem trazer grande economia para o Brasil, mas faltam estudos sobre os recursos hídricos do país e médicos especialistas na área (Foto: Marina Almeida)

“O período coincidiu com o início da comercialização de medicamentos e a indústria farmacêutica norte-americana iniciou um grande lobby contra a crenoterapia, o que também contribuiu para seu descrédito”, explica o médico Marcos Untura Filho. Outros elementos que contribuíram para isso foram a proibição dos cassinos e o descobrimento da penicilina e da cortisona, que trouxeram avanço para o tratamento de doenças até então feito com as águas. “Era fundamental para os laboratórios combater essa medicina não invasiva, barata, e muito conhecida na época, para impor a sua, com remédios. Foram muito bem sucedidos nisso e todos esses municípios que viviam desse ciclo medicinal da água entraram em decadência econômica”, acredita o ativista ambiental Franklin Frederick. Ele lembra a experiência do médico Joselito Fonseca Corrêa que atuava no Programa Saúde da Família, em Cambuquira, no início dos anos 2000 e usou as águas com alta concentração de ferro no tratamento de anemia das crianças. “Ele pegava a água ferruginosa no parque e levava para uma escola da região. Cada criança tomava dois copos dessa água por dia, a custo zero. Em três meses conseguiu acabar com a doença”, relata. O médico não atua mais na região, mas sua experiência mostra as possibilidades deixadas de lado. “Quantas crianças não poderiam se beneficiar desses tratamentos a custo zero?”, questiona Frederick. “Seria interessante, por exemplo, um estudo epidemiológico para descobrir quais as doenças menos frequentes nessa população, que toma essa água há anos.”

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Falta de estudos

Untura Filho, que vive em Poços de Caldas, outra estância hidromineral do estado, aponta a falta de pesquisas atuais sobre o tema no Brasil como o principal obstáculo para o desenvolvimento da área. “A maior dificuldade é a total falta de estudos e trabalhos científicos com as nossas águas, a ausência absoluta de profissionais médicos especialistas em Hidrologia Médica e a falta de credibilidade da crenoterapia por parte da classe médica”, diz. O médico acaba de defender seu doutorado sobre a estância de Caxambu pela Universidade Complutense de Madri, na Espanha, e conta que, ao contrário do que acontece aqui, há diversas pesquisas europeias que comprovam a eficácia do tratamento com águas.

Em São Lourenço, Gruta dos Milagres guarda mensagens de agradecimento às curas alcançadas pela água (Foto: Marina Almeida)
Em São Lourenço, Gruta dos Milagres guarda mensagens de agradecimento às curas alcançadas pela água (Foto: Marina Almeida)

Para ele, num país rico em fontes minerais, como é o Brasil, seu uso para tratamentos de saúde traria uma grande economia para o Ministério da Saúde. A crenoterapia é amplamente usada na Europa, Ásia, Oriente e em alguns países latinoamericanos como forma complementar aos tratamentos médicos tradicionais. Em países como Espanha, Portugal, França, Alemanha e Turquia, o governo paga esses tratamentos para os aposentados. “A crenoterapia auxilia na preservação ou recuperação da saúde, levando a um gasto menor com hospitalização, cirurgias, horas de afastamento do trabalho, gastos com medicamentos, entre outros”, explica. O médico, que é reumatologista, diz que, em seu consultório particular, costuma direcionar seus pacientes a balneários ou termas para complementar o tratamento alopático, realizado paralelamente. Untura defende a volta dos estudos nessa área nas faculdades de medicina e em outras áreas da saúde e conta que há um módulo do curso de pós-graduação em Cuidados Integrativos e Complementares da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que desde 2012 aborda a hidrologia médica/termalismo social.

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